Para que a indústria de HQs não morra

Por Marcelo Sarsur
http://b33p.me/
24/03/2011

Eu já tinha planejado sobre o que escrever nesta coluna: continuando o tema das últimas vezes, eu ia oferecer sugestões para aumentar o número de leitores de HQs no Brasil. Mas como surgiu o assunto “pirataria” mais uma vez aqui no b33p, pensei em dividir algumas reflexões sobre o problema – a meu entender, muito sério – da divulgação de revistas escaneadas. Antes de mais nada, quero tratar de sustentabilidade. 

Muitas vezes, falamos em sustentabilidade no plano do meio ambiente. Mas o conceito tem tudo a ver com o delicado equilíbrio econômico por trás da produção e comercialização de revistas em quadrinhos. Defino “sustentabilidade” como a qualidade de uma conduta humana que, ao causar impacto no meio social, não destrói as bases que permitem a sua futura reprodução. A conduta sustentável é aquela que, quando realizada, permite ainda a sua repetição futura, pela mesma pessoa ou por terceiros. Há sustentabilidade quando se usa uma porção moderada de recursos (econômicos ou naturais), de modo a preservá-los para futuros usos, ou repondo aquilo que foi gasto. Eu fico me perguntando: se um banco brasileiro pode falar em “uso sustentável do crédito”, por que não falar em “leitura sustentável de HQs”?

Uma vez assentada a premissa, vamos aos fatos. 

Ler HQs na Internet é fácil. Sites de trocas de arquivos (como o MegaUpload, apenas para dar um exemplo) estão lotados de revistas, séries inteiras de HQs, escaneadas em alta qualidade e compiladas, convenientemente, em arquivos .zip ou .rar. Não vou dar links aqui: não só isto frustraria completamente o meu argumento, mas também porque achar estes acervos é muito simples. Basta jogar a pesquisa no Google. São argumentos bobos dizer que as HQs escaneadas “perdem em qualidade” se comparadas com o artigo original, ou que o “prazer da experiência” está em ler no papel. Trata-se de uma questão de gosto, e muita gente não se importa com a mudança de formato – adicione-se, ainda, a conveniência de ler em qualquer lugar, sem o risco de amassar ou de rasgar as revistas. Não é tentador, ainda, ter à disposição qualquer história, a qualquer momento, sem pagar nada por isso? 

Só que esta atitude, no meu humilde entender, não é sustentável. 

Estamos aqui, queridos amigos, para chorar a morte da indústria de HQs como a conhecemos. Morreu de homicídio…
HQs têm altos custos de produção: por baixo, se formos considerar de modo geral, tem-se a despesa com roteiro (a depender da revista, uma história de 22 páginas consome o dobro ou o triplo disso em roteiro escrito), desenhos (1 página de quadrinhos pode gastar mais de uma semana para ser feita!), edição (horas de trabalho e de pesquisa para checar as imperfeições do roteiro, conferir uniformes, conciliar a história com o que mais está acontecendo no Universo da editora, etc.), impressão (despesa séria) e distribuição (aqui incorporados os custos do transporte e da divulgação publicitária). Uma vez produzida, a história será vendida em formato serial (a edição original) e em formato encadernado, meses depois. Há também a venda dos direitos de reprodução em outros países (como o Brasil, por exemplo), e é só. Nas revistas brasileiras, repita os custos de impressão, adicionados daqueles referentes à tradução (que não é despesa, e sim investimento – uma história mal traduzida prejudica em muito o prazer da leitura!) e às licenças de publicação. 

O preço das HQs, aqui e lá fora, é também relativamente barato em face do alto custo de produção. No Brasil, numa revista que custa R$ 6,50 (menos de US$ 4,00), recebemos 3 histórias – o que lá fora não sai por menos de US$ 9,00 (ou cerca de R$ 15,30), porque cada revista de 22 (ou 20) páginas, com anúncios, custa entre US$ 2,99 e US$ 3,99. Agora compare o preço de uma revista, que você pode ler quantas vezes quiser, e o de um ingresso de cinema – mesmo computando a meia entrada, para quem ainda tem direito. É bem mais em conta a HQ, não é? Lá fora, também é a mesma coisa: o preço médio do ingresso de cinema nos EUA era US$ 7,50 (cerca de R$ 12,75) em 2009, e hoje fica cerca de US$ 10 (assustadores R$ 17,00 – quase o que já pagamos diariamente nos multiplexes dos Shopping Centers, e menos do que custa a entrada para filmes em 3D). Lá fora ou por aqui, um ingresso de cinema (para cerca de duas horas de entretenimento) custa o mesmo que duas ou três HQs. Revistas em quadrinhos, por mais que sejam caras em comparação a outras épocas, estão ainda muito mais baratas que outras formas de diversão. 

Para a indústria, entretanto, há muito mais a ganhar com a cessão de direitos sobre os personagens para a produção de filmes e de badulaques (brinquedos, camisetas, chaveiros, etc.) do que na comercialização de HQs em si. Vamos aos números: no mês de fevereiro de 2011 como um todo, a revista em quadrinhos best-seller foi Green Lantern 62 (com uma capa-pôster comemorativa), que vendeu 71.517 unidades, a US$ 2,99 cada, para um valor total de US$ 213.835,83. A empresa de HQs que mais faturou no mês foi a Marvel Comics, que, com 40,69% do mercado (em dólares gastos), recebeu US$ 9.172.124,44 em HQs. (Fonte). Para quem gosta de estatísticas, vale ler o artigo completo, escrito por John Mayo mensalmente, sobre as vendas de HQs nos EUA (o mês de fevereiro de 2011 foi o quarto pior mês desde o início da medição de vendas, em 2003). 

No final de semana menos movimentado nos cinemas estadunidenses, de 4 a 6 de fevereiro de 2011, o filme The Roommate, sozinho, faturou US$ 15.002.635,00 (Fonte), sendo que seu orçamento de produção foi de cerca de 16 milhões de dólares. Ou seja, no final de semana menos movimentado no mercado estadunidense, um filme faturou mais do que a líder de mercado nas HQs, a Marvel Comics, no mês todo. O filme Homem de Ferro 2 arrecadou, no mundo todo, cerca de 622 milhões de dólares, enquanto a revista do Homem de Ferro vendeu, em fevereiro, cerca de 42.191 unidades, a US$ 2,99 cada, para um grande total de US$ 126.151,09. Precisa mostrar o problema? 

Heinberg? Se a gente trocar o nome do Dr. Destino pra McArmadura, você volta a escrever as nossas histórias? Por favor? 

Os efeitos dessa depressão na indústria de HQs já se refletem na perda de talentos – um verdadeiro dreno de cérebros, que preferem outros empregos melhor remunerados. Brian K. Vaughan e Allan Heinberg são dois exemplos: o primeiro, o roteirista de séries espetaculares, como Y: O Último Homem, acabou indo para a equipe de roteiristas do seriado Lost, e não voltou para as HQs. Já o segundo, que emplacou o sucesso Grey’s Anatomy e seus derivados, deixou de lado os Jovens Vingadores – um dos melhores títulos da Marvel nos últimos 10 anos – e só escreve quadrinhos ocasionalmente. A perda é toda dos leitores, que têm de aturar roteiristas menos que ideais. 

Ao contrário das bandas e cantores, roteiristas e desenhistas de HQs não fazem turnês, não ganham por show ou palestra, nem podem vender roteiros ou páginas originais (com raríssimas exceções, previstas em contrato com as editoras). A venda das revistas é sua principal fonte de sustento. Se ocorre a pirataria, como pretender que a atividade econômica continue sem sobressaltos, sem se traduzir em perdas financeiras para os criadores?

 É muito fácil apontar os grandes conglomerados econômicos como os vilões dessa história. Não que os mesmos sejam isentos de culpa – seja na indústria musical, ou cinematográfica, ou mesmo nos quadrinhos. Vale lembrar que as duas grandes editoras, Marvel e DC, pertencem respectivamente à Disney e à Warner Bros., duas empresas que se apropriam dos direitos autorais a preço de banana e que tratam muito mal os criadores – a saber, a luta da família Siegel pelos direitos do mais célebre herói de todos, o Superman. Contudo, esta mesma lógica não se aplica a outra situação: as publicações independentes, em que os criadores arcam com os custos da produção (e recebem seus eventuais dividendos). Há casos de sucesso, como Robert Kirkman, mas, para cada um desses, há inúmeras histórias de fracasso. 

Lá fora, o cartunista Tom Tomorrow é um crítico mordaz dessa pretensão de que tudo na Internet tem que ser de graça. Longe de ser um marionete do corporativismo, Tom é um feroz crítico da direita estadunidense (se tiver um tempo, leia suas tiras sobre o Partido Republicano e o Presidente W. Bush e até mesmo dos momentos mais direitosos moderados do Presidente Obama), mas sente na pele o quanto é complicado tentar viver de arte, especialmente da arte narrativa gráfica. Em seu blog, Tom pede aos leitores doações pelo PayPal, mas admite que o grosso de sua renda ainda vem de fontes tradicionais, como contratos com jornais e publicações online, como a Salon. 

Argumenta-se que muita gente – especialmente aqueles mais carentes – não podem arcar com o caríssimo custo da arte e da diversão entre nós. Só que, no Brasil, quem pratica a pirataria de HQs é quem, em regra, pode pagar por elas – e quem também dá conta de ler em inglês, já que a maioria das revistas não foi traduzida. O argumento não procede. Se a questão é ter acesso ao bem cultural, vamos pensar em políticas públicas de inclusão (a proposta do Bolsa Cultura foi ridicularizada pelos setores mais imbecis da oposição e arquivada. Não era hora de trazer o projeto de volta ao debate?), e não na liberação indiscriminada da pirataria. Aliás, a quantas anda a popularização do acesso à Internet e o barateamento dos PCs? Quando a população efetivamente carente puder baixar os arquivos da Internet, e não apenas certos setores já favorecidos da sociedade, vale retomar a discussão deste ponto. 

Então, antes de baixar uma HQ que você poderia comprar em banca (sustentando a carente indústria nacional) ou na Amazon (preservando a produção de HQs na fonte, que é a indústria estadunidense), pense se esta é uma atitude sustentável. Será que teremos revistas de qualidade se o mercado estiver deprimido pelos downloads ilegais? Será que bons criadores vão abrir mão de outras oportunidades de trabalho para fazer HQs, se a indústria não puder remunerar corretamente seus esforços? Será que a indústria de HQs estará aberta daqui a 20, 30 anos se este tipo de conduta continuar acontecendo? Leia esta tirinha, do já mencionado Tom Tomorrow, e reflita. (Aqui, eu poderia ter simplesmente copiado a imagem e colado no b33p. Só que nós não pagamos pelo direito de reprodução. Se é para pregar contra um tipo de pirataria, é preciso praticar o que se defende.)

Continuo acreditando no debate sobre o uso justo – fair use – de materiais protegidos por direitos autorais. Um ponto de equilíbrio entre a proteção aos titulares e a livre divulgação, a bem do enriquecimento da humanidade, pode ser localizado pelos lados interessados. Dou um exemplo: escaneei uma página da revista Lanterna Verde (editada pela Panini) para ilustrar uma das minhas primeiras colunas. Não foi a revista toda, mas apenas uma página, que continha um balão útil a um argumento meu. Há nisso violação de direito autoral? Quero acreditar que não. O uso pessoal sem finalidade lucrativa, a paródia, o uso parcial da obra, tudo isso merece ser rediscutido e consagrado na legislação. Só não podemos pretender sepultar os direitos autorais e de obras intelectuais por conta de uma pretensa universalização do acesso, que ainda não aconteceu, e dificilmente acontecerá sem se repensar a própria exclusão digital. 

Não posso, em sã consciência, defender ou sustentar a prática indiscriminada da divulgação de HQs por sites de compartilhamento de arquivos, especialmente quando há tanto a perder. Se os quadrinhos vão sobreviver como meio artístico, precisamos defender que seus criadores possam sobreviver a partir de seus ganhos. 

(P.S.: Sei que devo ter soado ranzinza ou até antiquado na minha coluna. O intuito é fomentar o debate, trazendo argumentos diversos daqueles já apresentados aqui no b33p. O espaço abaixo é para a discussão; façam uso dele, para discordar ou para concordar com aquilo que expus. E se acharem a minha opinião uma relíquia, não se espantem: afinal, o nome da coluna é Velho Demais, e eu sou mesmo…)

468 ad

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *