Bundalização da música, banalização do Direito Autoral

Autor – Rodrigo Moraes
Advogado autoralista e professor da Universidade Federal da Bahia 

A ilustre deputada estadual baiana Luiza Maia é autora do projeto de lei nº 19.203, de 26 de maio de 2011, que “dispõe sobre a proibição do uso de recursos públicos para contratação de artistas que em suas músicas, danças ou coreografias desvalorizem, incentivem a violência ou exponham as mulheres a situação de constrangimento”. 

Segundo a parlamentar, seu projeto não pretende fazer censura à liberdade de expressão, mas tão-somente impedir que a Administração Pública utilize dinheiro público na contratação de grupos musicais que cantem músicas de baixo calão, que incentivem a violência ou exponham mulheres a situação de constrangimento. 

Indaga-se: se o projeto de lei for aprovado, Caetano Veloso, caso seja contratado pelo poder público baiano – para fazer um show de réveillon, por exemplo –, poderá cantar sua obra “Não enche”? Nessa canção, que faz parte do seu disco “Livro”, vencedor do GrammyLatino de 2000, Caetano chama a personagem feminina de: “quadrada”, “demente”, “harpia”, “aranha”, “rapina”, “perua”, “piranha”, “sanguessuga”, “pirata”, “malandra”, “vagaba”, “vampira”, “tarada”, “mesquinha”, “vadia”… 

O irmão da Ministra da Cultura, Chico Buarque de Hollanda, é autor desses famosos versos: “joga pedra na Geni, joga bosta na Geni, ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá pra qualquer um, maldita Geni!” A deputada Luiza Maia se diz fã de Chico. Abriria uma exceção para o mestre cantar “Geni e o Zepelim” num show pago pela Administração Pública baiana? Será válido o argumento de que a obra foi feita para a peça Ópera do Malandro, que não pode ser descontextualizada etc.? 

Os ilustres poetas Caetano e Chico desvalorizam as mulheres com essas músicas? Caso sejam contratados pelo poder público baiano, estarão impedidos de cantar tais canções? Caso cantem, perderão, automaticamente, o direito aos respectivos cachês? 

O Poder Legislativo baiano quer vetar a escolha de bandas que só falam de bundas. Mas o Poder Executivo insiste em dar inúmeros calotes nos autores brasileiros. Inúmeras prefeituras do Estado da Bahia não pagam direitos autorais. Alegam que estão fomentando a Cultura. Mas fomento à Cultura nada tem a ver com fomento à fome. Etimologicamente, fomentar significa alimentar o fogo. Se a Cultura é uma grande fogueira, é por causa da união de várias chamas, ou seja, de vários autores.A contratação de grupos musicais, pela Administração Pública, sem o devido pagamento de direitos autorais, fere, sim, a moralidade pública e a Lei de Direito Autoral brasileira. E fere, também, inúmeras mulheres, compositoras e filhas de compositores, já que a deputada se diz “feminista de carteirinha”. 

O Poder Judiciário já foi advertido pela doutrina autoralista nessa questão do “mérito” de uma obra, conforme veremos abaixo. Tais argumentos servem para uma reflexão a ser feita pelo Poder Legislativo baiano, que, ao contemplar esse projeto de lei nº 19.203/2011, corre o risco de repetir o erro do Judiciário na tentativa de exclusão da tutela de obras ditas “menores”. Vejamos. 

Em se tratando de Direito Autoral, uma música de quinta categoria de um autor pagodeiro, ainda que seja repudiada por parcela da sociedade, pelo administrador público (prefeito ou governador) e pela deputada baiana Luiza Maia, deve, sim, merecer proteção autoral, caso contenha um mínimo de originalidade. 

Uma obra, para ser protegida, não precisa ter mérito ou qualquer valor intrínseco, seja artístico, cultural ou estético. Até porque, como diz o velho brocardo popular, “gosto não se discute”. A máxima “de gustibus non est disputandum”, na verdade, não significa que o gosto não pode ser discutido, mas que não é decidível, tendo em vista a inexistência de critérios lógicos e racionais. 

Machado de Assis, em sua clássica obra “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, traz esse irônico diálogo do personagem Brás Cubas: “A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus”. 

A obra não precisa agradar ao público e à crítica especializada para fazer jus a uma proteção autoral. 

Para uns, Tom Jobim foi o maior compositor do Brasil. Para outros, todavia, o notável Maestro Soberano Antônio Brasileiro não merece ser tão reverenciado. Para uns, Machado de Assis foi o maior escritor do país. Para outros, infelizmente, ele tinha uma “redação difícil”.

Essa excessiva subjetividade da alegação do mérito seria incabível no Direito de Autor, pois acarretaria numa total insegurança jurídica e numa perigosa elitização cultural. O magistrado não é um crítico de arte. O Direito de Autor não pode estar sujeito a achismos de juízes em relação à qualidade estética de uma obra intelectual. Não pode estar adstrito a decisionismo judicial. 

O perigo da arrogância e do subjetivismo seria inevitável se o julgador tivesse o poder de analisar o “mérito” de uma obra para decidir a solução de um caso concreto. A sua visão crítica seria falível, relativa. 

O deputado luso Alexandre Herculano (1810-1877), contudo, na contramão das reivindicações de uma legislação que beneficiasse escritores portugueses, propôs a implantação de um “sistema de recompensas públicas”, a fim de favorecer os talentosos escritores que viviam na miséria, e não mais proteger aqueles que escreviam com “o olho no mercado”, envenenando as multidões com obras perniciosas, no intuito meramente de se locupletar. Herculano criticava o Direito de Autor, alegando que ele protegia mais “os livros frívolos, corruptores ou que representam pouco e fácil trabalho”. Segundo ele, esse ramo do Direito, na prática, dava “mais favor ao livro nocivo ou, pelo menos frívolo, do que ao livro útil e grave” (REBELLO, Luiz Francisco. Garrett, Herculano e a Propriedade Literária. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999, p. 134). 

Vê-se que, hoje, esse sistema seria terminantemente ilegal, já que a proteção de uma de obra não se dá por causa de sua qualidade. Seria perigosíssimo atribuir ao magistrado total liberdade para que, de acordo com seu juízo de valor em relação ao “mérito” da obra, julgasse se haveria ou não tutela autoral. Inelutavelmente, inúmeras arbitrariedades poderiam ser cometidas. 

A proteção autoral não pode ser mais encarada como um prêmio concedido a alguns privilegiados detentores de um dom transcendental. Existe, inequivocamente, uma crise no conceito de originalidade. 

José de Oliveira Ascensão, por exemplo, condena o que chama de “movimento de banalização do Direito de Autor”. Segundo ele, “o Direito de Autor é propugnado apelando-se para a nobreza da criação; e afinal procuram-se fazer passar produções de dignidade nula ou quase nula!” (ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 56). 

A dispensa do requisito do mérito foi construção doutrinária, sobretudo, da França. Apesar da respeitável crítica do ilustre Ascensão à doutrina francesa, que dispensa o requisito do mérito, acreditamos que o sol de proteção deve brilhar sobre todas as obras minimamente criativas, tenham ou não qualidade estética. Não importa se a obra é comum, vulgar ou obra-prima.

Criação intelectual não significa obra criada por um verdadeiro “intelectual”. De Antônio Carlos Jobim ao mais vulgar do compositor popular, de Glauber Rocha ao pior dos diretores de pornochanchada, de João Ubaldo Ribeiro ao mais comercial escritor de livros de autoajuda, a proteção autoral é a mesma. 

A dignidade da lei autoral é exatamente a de não se importar com o “grau de dignidade” da obra, por ser questão subjetiva e, por isso mesmo, relativa. 

Ademais, uma obra pode ser bastante simples e genial. E outra, complexa, refinada, mas incapaz de transmitir ao público qualquer sentimento ou emoção. 

Na prática, o que se observa é que as chamadas “obras menores” adquirem, não raro, elevado significado econômico. São triviais e rentáveis. Essa é a realidade. Sem dúvida, um paradoxo. 

O Direito Autoral não tutela apenas o panteão dos Maiores, os verdadeiros divisores de águas, a “alta” música, popular ou erudita, a “alta” literatura. Não protege apenas os clássicos, que vencem o fluir do tempo. Protege também obras efêmeras, descartáveis, passageiras. 

Enfim, assim como é perigosíssimo o Poder Judiciário adentrar no mérito de uma obra, para dizer se ela é ou não digna de proteção autoral, é também temerário o Poder Legislativo querer impor ao Poder Executivo (à Administração Pública) a contratação somente de bandas musicais “politicamente corretas”. 

Mais eficaz do que o projeto de lei da ilustre deputada estadual Luiza Maia, que tem inegáveis boas intenções,seria a existência de escolas públicas de qualidade, com professores (bem pagos!) de música, dança e literatura. O Estado da Bahia, infelizmente, está longe de ser um modelo de educação pública. 

Não adianta querer tapar o sol com a peneira…

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